Aposto que você já ouviu de alguém que a indústria automotiva tem ignorado o prazer de dirigir. Cada vez mais focada em agradar o meio ambiente, desenvolve tecnologias que tiram a emoção da direção. Carros híbridos, 100% elétricos e com direção autônoma estão surgindo em todas as montadoras. Quem dirige por prazer tem cada vez menos opções, e as que existem são – em sua maioria – caríssimas.
O que temos de mainstream nos níveis mais acessíveis do mercado hoje é o famoso “downsizing”, solução utilizada por quase todas as montadoras. E ela surgiu muito tempo depois de ter sido comprovado que motores pequenos consomem e poluem menos do que motores grandes em situações normais de uso, como no trânsito. Se isso parece óbvio, é porque é! Mas também parece óbvio que não daria apenas para reduzir a cilindrada ou a quantidade de cilindros sem considerar a perda de potência. Afinal a conta é simples: os carros teriam de entregar o mesmo ou mais, com maior eficiência, ou seja, menor consumo e emissões.
A solução encontrada é uma antiga favorita dos entusiastas, a indução forçada, através de um turbocompressor. Motores turbo existem há muito tempo, e sempre foram utilizados para aumentar a performance de veículos com motores relativamente pequenos. Cada motor admite uma certa quantidade de ar e combustível para trabalhar, e a força da explosão da mistura dos dois é que gera a potência que vai para as rodas. Quanto mais ar é admitido, mais combustível é necessário, e quanto maior essa combinação, mais forte é a explosão.
Partindo desse princípio, o turbo surgiu para que mais ar fosse forçado para dentro de um motor que, por pressão atmosférica (aspiração natural), utilizaria muito menos. Para que isso aconteça, o turbo conta com dois rotores (as chamadas “turbinas”, por serem pás giratórias), um fica no sistema de escape e é ligado por um eixo a outro no sistema de admissão. O primeiro, conforme recebe o fluxo de gases do escapamento, passa a girar a velocidades altíssimas, e essa rotação é passada para o de admissão, fazendo com que o ar seja comprimido para dentro do motor, aumentando muito seu volume.
Essa simples solução para se obter aumento de performance deixa de ser tão simples quando passamos a pensar em dirigibilidade. A maior contrapartida do desempenho de um motor turbo é o tempo que se leva para que a turbina comece a gerar potência e a brutalidade com que ela chega. O famoso “turbo lag” é o tempo que leva para que os gases de escape atinjam um fluxo necessário para que as turbinas girem o bastante para gerar potência perceptível. E quando se torna perceptível, fica difícil de manter o carro sob controle.
Esse era o comportamento padrão de carros de corrida, que exigiam o máximo do piloto para que mantivesse a rotação sempre acima de 3500 RPM, em média, já que abaixo disso, o motor não tinha desempenho nenhum. E esse comportamento foi parar nas ruas, com carros como o 911 Turbo, famoso “widowmaker” (criador de viúvos). As pessoas com conta bancária gorda e habilidade magra eram pegas de surpresa quando o motor vencia o turbo lag, principalmente em curvas, e despejava potência nas rodas repentinamente, causando o pêndulo que os motoristas não sabiam como segurar.
O turbo precisava ser domado. E apesar do imenso sucesso entre preparadores e equipes de competição, para a maioria das montadoras, colocar algo assim debaixo do capô de seus carros geraria mais dores de cabeça com clientes se matando do que os números de vendas justificariam. Por isso elas mantiveram os motores aspirados e continuaram aumentando suas capacidades (cilindros e cilindrada). Além disso, o ganho de tecnologias em segurança e conforto acabavam por aumentar o peso dos carros, que, consequentemente, precisariam de mais desempenho.
A maioria de nós deve se lembrar de como o motor 1.0 foi recebido no mercado. Mesmo com a economia de combustível que entregava, a baixa cilindrada era algo questionável. Até que a tecnologia avançou e permitiu que os 1.0 passassem a render acima dos 70 cv sem perder em economia, e isso acabou com o preconceito do consumidor. Até que o progresso avançou e criou a necessidade de carros que não consomem nem poluem.
E então, o turbo voltou a ser considerado, partindo de um outro ponto de vista. Imagine a cena: os engenheiros das principais montadoras (com alguém do financeiro sentado ao lado, claro) pensando: “A legislação de consumo e emissões está cada vez mais exigente. Para atendê-la, nós poderíamos fazer com que nossos motores poluíssem e bebessem menos, mas seria caríssimo atingir essas metas e continuar aumentando a potência, algo necessário para que os consumidores continuem comprando. Uma forma mais barata e efetiva de atingirmos esses objetivos seria aumentar o torque do motor na faixa de 1000 a 3000 rpm - faixa do anda e para do trânsito, na qual os motoristas passam mais tempo. Por isso, sugiro que voltemos a estudar a utilização do turbo.”
E foi dessa ideia (figurativamente) que surgiu a enxurrada de carros com motores menores e turbinados que temos visto. Não tanto no Brasil, cujos representantes compactos de menos cilindros com turbo são só quatro: Ford Fiesta 1.0 EcoBoost, com 125 cv a 6000 rpm e 17,3 kgf.m a 1400 rpm; Hyundai HB20 Turbo, com 105 cv a 6000 rpm e 15 kgf.m a 1500 rpm no etanol (98 cv e 13,8 kgf.m na gasolina); VW Up! Tsi, também com 105 cv a 5000 rpm e 16,8 kgf.m a 1500 rpm (101 cv e o mesmo torque na gasolina) e VW Golf 1.0 Tsi de 125 cv a 5.500 rpm e 20,4 kgf.m de torque.
Os carros de luxo não escaparam dos motores downsized. Atravessando o oceano, só se fala em motores V10 substituídos por V8 (BMW M5), V8 por V6 (Audi RS5), V6 por 4 em linha (Porsche 718, que trocou os flat-6 2.7 e 3.4 por dois flat-4, 2.0 e 2.5) e 4 em linha por 3 em linha (em quase todos os compactos). Há também motores grandes que mantém o número de cilindros, mas eles são substituídos por novos com menor capacidade, como o V12 da Aston Martin, que caiu de 5.9 para 5.2 litros, ou o V8 da Mercedes-Benz, que era 6.2 e agora é 4.0, ou ainda o flat-6 do Porsche 911, que desceu de 3.8 para 3.0. Todas essas reduções, em cilindros e em cilindrada, são possíveis graças ao turbo.
Na maioria dos casos são utilizados turbos menores - que fazem o motor atingir e manter o torque máximo desde 1400 rpm-, com geometria variável, que altera o ângulo das pás do rotor para aumentar ou diminuir a pressão do sistema de acordo com a rotação. Também existem os turbos “elétricos”, que são mantidos em rotações de carga máxima nos momentos em que o fluxo de gases do escape diminui. Hoje, é comprovado que potência e eficiência de um motor podem crescer juntos.
Para as montadoras, é o cenário perfeito: atende-se a legislação e atrai-se o consumidor, que pode comprar veículos potentes sem culpa. Por mais que seja quase impossível se atingir as mesmas marcas de consumo divulgadas oficialmente, já que são obtidas em laboratório, pelo menos pode-se dormir tranquilo sabendo que as emissões de poluentes de seu carro são mais amenas, certo? Bem, não é tão simples assim e explicaremos o motivo mais pra frente.
Seria mesmo o downsizing a última chance dos motores de combustão interna? Pense nisso.