A pandemia do coronavírus fez com que, dentre outras consequências para o mundo esportivo, o campeonato da F1 ainda não começasse. E sequer há uma data já designada pela Formula One Management (FOM) e a FIA. Originalmente a etapa de abertura seria dia 15, em Melbourne, Austrália.
Além de não sabermos se a temporada irá começar dia 5 de julho na Áustria, mais recente orquestração, algumas deliberações da FOM, FIA e dos representantes das dez equipes, definidas nesses dias de incertezas, já transformaram a competição.
Uma coisa é certa: a F1 que irá emergir quando o campeonato começar, seja lá quando for, será diferente da que estamos acostumados. E bem poucos sabem disso.
Consegui, finalmente, falar com dois amigos do primeiro escalão da F1 para dirimir muitas das dúvidas a respeito das decisões tomadas nos últimos dias. Estava tudo no ar.
Chase Carey, da FOM, Jean Todt, FIA, e os diretores dos times, como Toto Wolff, Mercedes, Christian Horner, Red Bull, e Mattia Binotto, Ferrari, estabeleceram medidas de enorme impacto no que vem por aí.
São surpreendentes, considerando-se a falta de desprendimento histórica das lideranças de todas as vertentes do evento. Se você é fã da F1 e assiste a suas corridas provavelmente vai gostar do rumo adotado, ao mesmo tempo em que ficará apreensivo com outras soluções, felizmente ainda não 100% definidas.
Qual a deliberação mais importante das reuniões via conference call entre os homens que decidem na F1?
Esta é excelente. As equipes só vão poder trabalhar no projeto dos carros de 2022, os da nova F1, a partir de janeiro de 2021. Em 2020 só será permitido desenvolver os modelos levados para Melbourne, os que seriam usados na primeira prova do ano.
Imensa, amigos, acredite! Se não fosse essa profunda mudança de cenário na F1, causada pela Covid-19, as equipes teriam de trabalhar, este ano, em duas frentes.
Um grupo de engenheiros, essencialmente, se dedicaria a desenvolver o modelo em uso, o de 2020, e outro o projeto de 2021, quando uma nova F1 viria aí, com carros e pneus distintos, outro critério de distribuição do dinheiro e a implantação de um limite orçamentário, dentre outras medidas.
Essa nova F1 deveria estrear no ano que vem, mas os representantes das dez equipes solicitaram para adiar a sua estreia para 2022. E tanto FOM quanto FIA concordaram, diante da importante queda de receita geral da F1, decorrente do menor número de GPs, este ano.
Pela regra antiga - os times terem de se dedicar, este ano, ao carro de 2020 e ao modelo revolucionário de 2021 -, quem dispusesse de muitos recursos, como Mercedes, Red Bull e Ferrari, tenderia a desfrutar de grande vantagem sobre os demais.
As importantes mudanças no regulamento, conceitualmente distinto do atual, exigem elevados investimentos em pesquisa, experimentação.
Mas, como mencionado, felizmente as equipes terão uma única frente de trabalho este ano: a de melhorar os modelos de 2020. E, mesmo assim, com restrições, como você verá mais para a frente.
A hora de retomar o que já vinha sendo feito pelas escuderias com relação ao projeto de 2022 será janeiro de 2021.
Mas não é só isso que mudou, a proibição de projetar e construir o revolucionário modelo de 2022 este ano. Olha que legal: o limite orçamentário imposto pelo novo regulamento valerá já para 2021. É fantástico! A estreia da nova F1 ficou para 2022, mas o teto de investimento, sabiamente, será implantado um ano antes.
Que o projeto dos carros de 2022 terá de ser desenvolvido com as equipes respeitando o limite orçamentário. Não haverá a disparidade brutal de investimentos entre ricos e normais nos estudos dos modelos de 2022.
Esse limite havia sido estabelecido em US$ 175 milhões, algo como R$ 840 milhões, mas vai também ser reduzido, em razão da menor arrecadação da FOM. Sem exposição de imagem, como hoje, não há como os patrocinadores cumprirem os contratos, ao menos integralmente.
Deu para entender melhor, agora, por que as consequências dessa mudança para a F1 são de fato significativas?
As três mais ricas e únicas vencedoras de corridas na F1 desde 2014, Mercedes, Red Bull e Ferrari, vão dar sequência aos projetos de 2022, a partir de janeiro do ano que vem, dispondo do mesmo orçamento dos demais, o estipulado pelo teto de investimento.
Estima-se que cairá de US$ 175 milhões para US$ 125 milhões, ou R$ 600 milhões. Só lembrando: o valor pago aos pilotos, aos três principais diretores das equipes e as despesas com marketing não fazem parte desse limite.
Bem, a primeira pergunta que você deve ter em mente é como saber se os diretores técnicos das escuderias vão respeitar o estabelecido: usar no túnel de vento somente o modelo deste ano para ser desenvolvido e não o de 2022?
Simples: todo túnel de vento utilizado pelas equipes terá uma câmera de TV monitorando-o. E os delegados da FIA poderão acessar às imagens, de onde estiverem, quando bem entenderem.
Como os carros de 2022 serão bem diferentes dos deste ano - e mesmo de 2021 -, por conta de uma nova aerodinâmica, não será difícil para a FIA detectar quem não está respeitando a determinação. Ou seja, está testando algo, este ano, do modelo de 2022.
Tem mais: já imaginou o número de profissionais envolvidos nos estudos no túnel de vento? É difícil, para não dizer impossível, um diretor técnico aparecer lá e dizer: “Olha, gente, não conte nada a ninguém, por favor, sobre esse nosso teste secreto, tá?”. A FIA deverá punir todos os envolvidos.
Os carros são desenvolvidos aerodinamicamente, também, através de estudos digitais, o chamado Computational Fluid Dynamics (CFD).
Os técnicos utilizam programas de computador para pesquisar a fluidodinâmica dos fluxos de ar que percorrem o carro, com fidelidade crescente em relação aos dados obtidos no túnel de vento e, principalmente, nas pistas. E custa muito menos.
As duas atividades são limitadas por regulamento. Nos experimentos de túnel de vento, cada time pode trabalhar 320 horas durante oito semanas, o que dá uma média de 40 horas por semana.
O apêndice 8 do código desportivo da F1 explica as restrições para uso do túnel de vento e CFD. São longas e complexas. Você as encontra no site da FIA.
De qualquer forma, os times são obrigados a enviar para a entidade relatórios de todas as atividades realizadas. Nunca houve acusações de um concorrente a outro nesse sentido. Geoff Willis, chefe de aerodinâmica da Mercedes, quem conheço dos anos 1990, em sua época de Williams, me disse ser muito difícil alguém burlar esse controle.
O mesmo valerá para a verificação de as equipes respeitarem o limite orçamentário a partir de 2021. Todt disse a um grupo de jornalistas – eu estava presente – que a FIA contratou uma empresa para estabelecer um modelo de gestão capaz de checar tudo com precisão.
Falou mais: “A pena para quem for surpreendido tentando nos enganar desestimulará qualquer tentativa de burlar a regra. A equipe poderá ser excluída do campeonato”.
E sobre a temporada que, acredita-se, poderá começar, agora, no início de julho, em Spielberg, Áustria, com alguns GPs tendo apenas dois dias, sábado e domingo? Aqui, outra grande surpresa. Se for como muitos na própria F1 desejam, representa uma má notícia.
Entenda: há quem defenda que a versão dos carros e unidades motrizes (motor) que foram levados para a primeira corrida do ano, em Melbourne, há duas semanas, seja a que deverá ser homologada pela FIA para competir este ano e no próximo.
Assim, nada do conjunto mecânico poderia ser modificado não apenas este ano, senão na próxima temporada também, já que pelo acordo recente apenas os componentes do conjunto aerodinâmico poderão ser substituídos - como aerofólios, assoalho, difusor e defletores.
É uma loucura. É um sinal de que a F1 não aprendeu com um erro grosseiro recente. Em 2014, primeiro ano do emprego da complexa e cara tecnologia híbrida - completa novidade -, o regulamento estranhamente estabeleceu que as unidades motrizes seriam homologadas antes de o campeonato começar e só seriam aceitas mudanças no gerenciamento eletrônico. Não nas peças mecânicas.
A Ferrari e a Renault começaram a temporada de 2014 - a Honda entrou em 2015 - com unidades motrizes aquém da desenvolvida pela Mercedes. E, assim, tiveram de permanecer até o fim do ano.
Para definir em duas palavras: estupidez total! Não há sentido proibir um competidor de melhorar seu equipamento. Por esse modelo, começou mal, termina mal.
A FIA permitia às equipes trabalhar na melhora da resistência, da confiabilidade das unidades motrizes de 2014, mas não da sua performance.
É como se um atleta especializado nos 100 metros rasos compreendesse nos treinos que o adversário baixou de 10 segundos o seu tempo e ele fosse proibido de treinar, para também baixar dos 10 segundos. Para que, então, haver competição?
No caso da F1, o tema está em discussão. Obviamente escuderias como a Ferrari não concordam. E com razão.
Os testes de inverno, em Barcelona, evidenciaram que o modelo SF1000 italiano tem vários problemas. Está atrás do W11 da Mercedes, do RB16-Honda da Red Bull e há quem acredite que até do RP20-Mercedes da Racing Point, este na verdade o modelo campeão da Mercedes em 2019, pintado de cor de rosa.
Dificilmente será intervindo somente no conjunto aerodinâmico, autorizado pelo acordo em discussão, que Ferrari, McLaren, Renault, seja lá quem for, transformará seu modelo de 2020 em um carro mais competitivo. Tudo na F1 é uma solução de compromisso entre as várias áreas do projeto.
Esse mesmo princípio está valendo para as unidades motrizes. A versão de Melbourne seria a que as equipes teriam de ter nos seus carros até a última etapa de 2021, não apenas 2020.
De novo: é permitido melhorar sua confiabilidade, não a performance. Essa fronteira nem sempre é muito clara, como vimos em 2014, e pode haver acusações de desrespeito à regra.
Para o bem da F1 será importante que tanto o conjunto mecânico como a unidade motriz possam ser desenvolvidos até determinada etapa da temporada, como, por exemplo depois da primeira metade. Algo como sete ou oito corridas, para, então, aí sim, serem congelados, mantendo livre somente as revisões aerodinâmicas.
Qual o risco de a FIA homologar os carros do GP da Austrália e os projetistas só poderem mexer na aerodinâmica?
Além do já mencionado, começar mal e terminar mal, o fã da F1 clama, reza por uma disputa de resultado menos óbvio. Uma competição cheia de incertezas, com alternância de vencedores, o que, a rigor, não acontece no suposto show desde 2014.
Hamilton, por sua competência e da Mercedes, conquistou cinco dos seis últimos títulos mundiais. E seu companheiro de Mercedes, Nico Rosberg, o outro, em 2016. Para não mencionar que a escuderia é hexacampeã, também, entre os construtores.
Se a F1 adotar essa política de congelar a versão dos carros levados para a que seria a primeira etapa da temporada, em Mebourne, a possibilidade de a Mercedes se impor não apenas no campeonato deste ano como no próximo é grande.
A primeira proposta era homologar a última versão dos carros e unidades motrizes, a usada no GP de Abu Dhabi, etapa de encerramento do campeonato, não a primeira. Mas então os times de menos recursos reagiram, sob o argumento de que, com menos dinheiro este ano, não poderiam realizar o mesmo trabalho dos mais ricos.
Foi aí que surgiu, então, a ideia de não permitir nenhum desenvolvimento mecânico. Ora, se um extremo não seria nada bom para a F1, a total liberdade até o GP de Abu Dhabi, a restrição total será ainda mais desastrosa.
Para o bem da F1, será importante que as equipes possam trabalhar seus carros por inteiro, não apenas na aerodinâmica, de quando as fábricas voltarem ao trabalho, talvez em maio, até, como mencionado, determinada fase do calendário.
Seria uma forma de permitir a quem está atrás de, ao menos, tentar se aproximar de quem deu a largada na frente.
Ao mesmo tempo em que FOM, FIA, os representantes dos times e promotores dos GPs debatem como pode vir a ser o novo calendário deste ano, outros temas são motivo de extensas discussões. Como essa: qual especificação dos carros deverá ser usada para congelar seu desenvolvimento. Não deve demorar muito para conhecermos o resultado.