Os holofotes do setor automotivo estão nos SUVs, fato. Mas calma. Tem segmentos que não ficam na sombra, tampouco merecem incompreensível pseudo-ostracismo. As picapes, por exemplo, desempenham papel bastante peculiar, além de representarem uma boa fatia do mercado. São fundamentais para diversos setores econômicos e compõem aquele termômetro para sinalizar como vão os negócios no país.
Só neste mês tivemos dois lançamentos desta categoria: a segunda geração da Fiat Strada e a reestilização da Chevrolet S10. E tem mais picapes de diferentes tamanhos por vir. Modelos de marcas com pouca tradição no segmento, como Renault e Peugeot, e novas médio-compactas para brigar com a Fiat Toro, que nada de braçadas na categoria que ela própria, se não inventou, revolucionou.
Apesar de ser um ano atípico, as picapes fecharam o primeiro semestre de 2020 com 14% de participação no mercado de automóveis e comerciais leves, segundo dados da Fenabrave, a entidade que representa as concessionárias.
Lembre-se que, aqui, falamos de produtos com maior valor agregado e que têm a maior parte de suas negociações para empresas, frotas e locadoras. Em média, 60% das picapes emplacadas no país são para vendas diretas.
A movimentação do setor também deixa claro a importância destes veículos. Além das estreias já mencionadas, há um claro investimento dos fabricantes nos sub-segmentos que mostram potencial e ainda condições de competição.
Isso porque, na base do mercado, fica difícil competir com a Strada. O exemplar da Fiat é líder há duas décadas da categoria de compactas, se mostra imbatível e vende, muitas vezes, o triplo do que a segunda colocada, a Volkswagen Saveiro.
E bom lembrar que, em média, oito em cada 10 modelos da Fiat entregues são para vendas diretas. Ou seja, para brigar com a Strada ainda é preciso saber jogar no “atacado”, com condições e linhas de crédito especiais, descontos generosos e pós-venda que não afugente o cliente pessoa jurídica.
Por que, então, não mirar nos andares superiores? É para onde várias empresas já se movimentam. Um andar acima já foi até criado por Renault e Fiat, com mais sucesso e originalidade por parte da segunda.
A Oroch inaugurou o segmento que chamamos de picapes médio-compactas, com porte das médias dos anos 1990 (as primeiras Ford Ranger e Chevrolet S10 a serem vendidas aqui, por exemplo), estrutura monobloco e espaço interno, preços e equipamentos acima das pequenas.
Pena que a Renault optou por fazer um “Duster com caçamba”, enquanto a FCA se valeu da plataforma do Renegade para desenvolver uma picape que tem, no design diferente do padrão, o seu principal argumento.
Agora, todos estão atrás da Toro. Ford e General Motors desenvolvem seus modelos de olho nesse próspero filão. A empresa da marca oval já testa uma picape sobre a plataforma do Focus. A GM, por sua vez, prepara sua resposta neste segmento com um modelo que vai usar a base do novo Chevrolet Tracker. Os dois modelos são cotados para serem feitos no Mercosul, inclusive.
Outra que se mexe é a Hyundai, com a Santa Cruz, cuja produção já foi confirmada nos Estados Unidos e que segue em testes e se tornou alvo fácil para projeções mundo afora. Porém, ainda sem confirmação para cá.
A Volkswagen foi uma das primeiras a criar uma rival deste porte, a Tarok, aquele carro-conceito mostrado no Salão de São Paulo 2018 praticamente “pronto” - o modelo final já foi registrado no INPI. Na “rádio corredor”, dizem que o projeto está em banho-maria, devido aos custos de investimento em um momento de incertezas econômicas.
Porém, é consenso dentro da marca que é preciso ter presença mais agressiva no mercado de comerciais leves, algo que a Saveiro não consegue. Enquanto a Amarok, apesar de todas as virtudes, se vê em um segmento ainda mais disputado.
Contudo, apesar de ser povoado de bons produtos, esse setor de picapes médias do qual a Amarok faz parte é o que mais atrai, justamente por aquele valor agregado que citamos no início. Basta ver a campanha da S10 2021 que acabou de ser lançada: foco total justamente no uso profissional da picape, especialmente para o agronegócio - as comoditties do campo vão muito além dos agroboys.
Tanto é que até mesmo marcas sem tradição vão se aventurar neste mercado disputado por marcas tradicionais. Além das duas estadunidenses e da Amarok que já falamos, tem Nissan, com Frontier, Mitsubishi, com L200, e a Toyota, com a Hilux, esta referência de veículo para muitos picapeiros e líder do segmento no acumulado do semestre quando o assunto são as vendas no varejo, ou seja: para pessoa física.
Para brigar com as versões mais caras destes modelos, ainda teremos umas grandonas que fazem a cabeça de muitos picapeiros. A RAM vai importar a 1500 e a Ford, a F-150, a partir de 2021, para tentar beliscar vendas das médias topos de linha com o argumento focado suas generosas dimensões.
É nesse bolo onde duas francesas vão se enfiar. A Renault vem com a Alaskan, cuja novela parece estar perto do fim. Fruto da aliança global da marca (Nissan e Mitsubishi) com a Daimler, a picape média apareceu e sumiu do Salão de São Paulo 2018. Teve produção confirmada, descartada, mas agora sua fabricação em Córdoba, na Argentina, já é realidade e o modelo deve chegar por aqui em 2021.
Nesta unidade argentina, também é feita a atual Frontier. E era para sair de lá, também, a Mercedes-Benz Classe X, mas a picape da marca alemã ficou pelo caminho e se transformou em um dos grande micos da indústria automotiva - não durou quatro anos na Europa e sua fabricação no Mercosul foi uma das primeiras confirmadas e... descartadas.
Já a Peugeot vai de Landtrek. O modelo será a variante da marca francesa da Changan Kaicene F70, picape chinesa feita em parceria com a PSA na Ásia. Aqui na América Latina, ela quer beliscar um mercado de 400 mil unidades/ano.
As vendas começam pelo México e depois seguem para alguns mercados do continente até chegar ao Brasil, o que estava previsto para novembro de 2020, mas que provavelmente ficará para início de 2021 devido à pandemia da Covid-19.
De qualquer forma, a Landtrek será produzida em El Palomar, na Argentina, para abastecer os países sul-americanos. Importante recordar que o CEO mundial da Peugeot, Jean-Philippe Imparato, foi bem claro ao dizer que o modelo quer brigar com a Hilux. Em outras palavras: está de olho mais no público que usa picape para o lazer.
No Brasil, a estratégia da Peugeot faz todo o sentido: disputar o varejo, para uma empresa que passa por dificuldades e ainda está em processo de reestruturação de sua rede, é bem mais inteligente do que se arriscar nas vendas diretas.
Certo é que as duas estreantes entre as médias terão trabalho árduo pela frente. Terão de pavimentar a imagem de suas marcas em um mercado disputado a tapa, e onde design e equipamentos falam alto de um lado, e preço, custo/benefício e robustez pesam mais do outro.
De qualquer forma, só ratificam a importância das picapes para o mercado, especificamente na retomada econômica tão esperada pós-pandemia. E mostra que nem só de SUVs vive o setor automotivo. Oxalá.