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Por que o Brasil não tem mais pilotos na F1?

Entenda as as razões de passarmos de celeiro de campeões a apenas coadjuvantes dos espetáculos nas pistas

por Livio Oricchio

Nesses tempos sem competição por causa da Covid-19, temos visto belas retrospectivas históricas da F1 e discussões bem conduzidas para esmiuçar problemas do automobilismo, de toda natureza.
O momento é oportuno, portanto, para resgatarmos a questão que há anos reverbera na mente dos brasileiros interessados por esse esporte: por que o país não apenas não mais revelou campeões do mundo, como sequer tem, hoje, representante no mundial?
Emerson Fittipaldi estreou na F1 no dia 18 de julho de 1970, com a Lotus, no GP da Grã-Bretanha. E até o dia 26 de novembro de 2017, com Felipe Massa, Williams, no GP de Abu Dhabi, o Brasil sempre teve ao menos um piloto no grid nesses 47 anos.
E conquistou muito: oito títulos mundiais, 101 vitórias e 126 pole positions. Seus campeões, Emerson, Nelson Piquet e Ayrton Senna, entraram para a história. Esse sucesso se estendeu a outras categorias, como a F Indy, F3000, F3 e Mundial de Esporte Protótipos, por exemplo.
Como na maior parte desse período, a nação não venceu nenhuma Copa do Mundo. Os estrangeiros diziam que o Brasil não era mais o país do futebol, mas da F1.
A 71ª temporada da história da F1 deverá começar agora em julho, de 3 a 5, no Circuito Red Bull Ring, em Spielberg, na Áustria. Será a terceira seguida sem a bandeira brasileira no grid.
Procuremos, pois, entender as razões de passarmos de celeiro de campeões a apenas coadjuvantes dos espetáculos nas pistas.

A visão do pioneiro

Iniciemos com um comentário de Emerson, como vimos, o pioneiro nessa era mais moderna da F1 - o primeiro, claro, foi Chico Landi, ídolo de Emerson, com sete GPs, entre 1951 e 1956 . “Só o talento já não resolve hoje.” Emerson afirma mais: “Ficou bem mais complexo para um piloto fazer sucesso”.
Hora de lembrar Nelson Piquet, campeão britânico de F3 em 1978: “Tudo o que eu precisei foi de um carro, Ralt, um motor, Toyota, um mecânico para me ajudar, um furgão e uma carreta”.

Muito mais profissionais

Já em 2005, ou 27 anos depois, seu filho, Nelsinho Piquet, também disputou a F3 na Inglaterra com uma equipe montada pelo pai. “Para ser campeão o Nelsinho precisou que eu contratasse vários profissionais, engenheiros, mecânicos, prestadores de serviços.”
Essa diferença de cenário exemplifica bem que apenas o talento não representa mais garantias de títulos, as vitórias passaram a ser o resultado da combinação de uma série de fatores, onde a função da equipe ganhou importância exponencial, mesmo nas categorias de base.

A maior complexidade do esporte elevou os custos das escuderias impensavelmente. Esse é outro impedimento para os pilotos brasileiros, além do câmbio bastante desfavorável e a tributação para o envio de dinheiro para fora.
Era necessário um orçamento bem menor no passado, mesmo proporcionalmente, para viajar ao exterior e tentar a carreira internacional.

A opinião de Jackie Stewart

Pesquiso o meu arquivo de entrevistas e encontro uma com Jackie Stewart, ex-piloto escocês três vezes campeão do mundo, adversário de Emerson nos campeonatos de 1972 e 1973. O brasileiro venceu em 1972, com Lotus, e Stewart no ano seguinte, Tyrrell.
Atente ao que Stewart disse sobre o momento do Brasil:
“Não ter novos campeões na F1 é uma coisa. Vejo como um fenômeno cíclico. A Alemanha não os teve também por décadas, até aparecer Michael (Schumacher). Agora, não ter pilotos na F1, dada as dimensões do Brasil, a importância de sua indústria automobilística e a paixão pelo nosso esporte, é um sinal de haver algo errado na sua formação, se é que estão sendo formados”.

Escola desatualizada

Esse é outro problema, a má formação dos pilotos que iniciam sua carreira de monopostos no Brasil. As dificuldades dos abnegados que ainda mantêm suas equipes de F3 no país levaram a competição a se distanciar muito da mesma importante categoria-escola onde ainda é disputada.
Pior: passa a falsa impressão a seus pilotos, campeões ou não, de que podem chegar na Europa e disputar as corridas no mesmo nível dos que lá praticam o automobilismo, tendo passado, antes da F3, pelo kart, F4 e a Fórmula Renault 2.0.
Tomemos o caso de outro filho de Nelson Piquet, Pedro. Em 2014, foi campeão brasileiro de F3, com 11 vitórias em 16 etapas. Em 2015, repetiu o feito, com 14 vitórias em 16 provas. A seguir, 2016, foi disputar a F3 europeia e não conseguiu um pódio nas 30 corridas, 19º no campeonato.

Em 2017, obteve um pódio nas 30 corridas, 14º na temporada. Precisou de dois anos para evoluir como piloto não apenas no aspecto velocidade – entender o nível mais alto dos concorrentes -, mas principalmente no trabalho de melhorar o carro, interagir com os engenheiros, desfrutar dos pneus, em especial na volta lançada na sessão de classificação. A competição no Brasil o formou mal.
No ano seguinte, na GP3, hoje F3, Pedro venceu duas das 18 corridas, quatro pódios, e terminou o ano em sexto. Na temporada passada, nova evolução, quinto no campeonato, com uma vitória, três pódios. Nesta temporada Pedro, nascido em Brasília, 21 anos, estará na antessala da F1, a F2.

Tempo para se adaptar

Esse tempo todo necessário para se equiparar ao nível técnico dos adversários é algo que, em muitos casos, compromete a carreira dos pilotos. Os patrocinadores querem resultados mais imediatos. São eles que lhes permitem sair na mídia. E sem investidores ninguém corre nas competições escola.
Adalberto Baptista seguiu de perto a trajetória do filho Bruno na GP3, em 2017, e na F Renault nos dois anos anteriores. Pelo mesmo motivo de Pedro Piquet, Bruno precisou entender a nova realidade do automobilismo europeu, se comparado com o praticado no Brasil, até começar a obter algum resultado. Marcou pontos três vezes na GP3.
“São dois ou três anos até nossos pilotos tirarem a diferença. E são meninos bem jovens, isso os desestimula bastante”, disse Adalberto. Hoje, Bruno, paulista, 23 anos, disputa a Stock Car e no ano passado já venceu uma corrida e conseguiu três pódios.

Academias revolucionaram tudo

Outro aspecto importante nessa história de os pilotos brasileiros entrarem na luta contra concorrentes com armas bem menos poderosas diz respeito às academias mantidas por equipes de F1. Elas oferecem uma formação que leva em conta todos os parâmetros necessários para sua evolução.
Veja: os pilotos participam frequentemente de reuniões com grupos de engenheiros, debatem os dados de telemetria - nada passa ao acaso -, estudam como tornar o carro mais rápido, equilibrado e adequado a seu estilo de pilotagem.

Não acabou. Nas academias os pilotos permanecem incontáveis horas em avançados simuladores, cada vez mais fieis às reações dos carros nas pistas. Ainda têm preparadores físicos pessoais, psicólogos especializados em esportes de alta performance, profissionais da área de comunicações, dentre outros desenvolvimentos.
Helmut Marko, responsável pelo programa de formação de jovens pilotos da Red Bull, piloto de F1 no início dos anos 1970, faz um comentário bastante pertinente: “Por que você acha que os pilotos estão chegando cada vez mais jovens à F1?"
Marko, ainda: “Você viu como sentam nos carros e parecem veteranos? Na sua preparação procuramos fazer com que já na estreia nada seja novidade para eles. Já antecipamos os desafios que enfrentarão e os treinamos para como devem reagir”.
O virtuoso Max Verstappen teve parte da sua formação, ainda em curso, sob a responsabilidade dos profissionais da Red Bull. Foi o mais jovem a estrear na F1, com 17 anos e 166 dias, e a vencer um GP, 18 anos e 228 dias.

Brasileiros nesses programas

Por muito tempo o Brasil não teve pilotos nessas academias, de grande importância na sua formação. Hoje temos Enzo Fittipaldi, 18 anos, nascido em Miami, neto de Emerson, na F3, ex-GP3; e Gianluca Petecof, paulista, 17 anos, no Europeu Regional, disputado com carros da F3. Ambos fazem parte da academia da Ferrari.
Outro brasileiro em academia é o paulista Caio Collet, 18 anos, da Renault. Correrá na F Renault 2.0.
Sérgio Sette Câmara, de Belo Horizonte, 21 anos, assinou este ano com a Red Bull para disputar a Super Formula, no Japão, categoria mais veloz que a F2. Se disputar um grande campeonato - desafio imenso, por haver lá ex-pilotos de F1 há anos na competição e conhecedores das pistas -, Sérgio terá alguma chance de ascender a F1 já em 2021.
Apesar de a pandemia do coronavírus estar condicionando a definição do calendário da F1, Sérgio acompanhará as equipes Red Bull e Alpha Tauri nas etapas que não coincidirem com as da Super Fórmula. Ele tem a superlicença para pilotar na F1 e é piloto reserva dos dois times.
O Brasil tem mais um representante no paddock da F1, Pietro Fittipaldi, 23 anos, nascido em Miami, como o irmão, Enzo. É o piloto reserva e de testes da Haas.
Outro que foi contratado recentemente pela Red Bull é Igor Fraga, nascido em Kanazawa, 21 anos, em seguida a ser campeão da Série Toyota, na Oceania. Disputará este ano a F3.
Além de Pedro Piquet, há outros dois brasileiros na F2 sem pertencer a uma academia de pilotos. É o paranaense de Maringá, Felipe Drugovich, 19 anos, e o paulista Guilherme Samaia, 23.
Na F4 italiana e alemã o Brasil terá o paulista Gabriel Bortoleto, 18 anos, egresso do kart.

Cada milésimo de segundo conta muito

Todas essas categorias são quase monomarcas de chassi, motor e pneus. As diferenças entre os carros no grid são mensuradas na casa dos milésimos de segundo. Cada detalhe faz a diferença.
Um piloto que não está no nível de preparo dos demais para as novas exigências do automobilismo ou mesmo desconhece as características dos pneus, em especial na volta lançada na definição do grid, pode ser algo como meio segundo mais lento que o pole position.
Isso se tiver talento. E meio segundo o fará largar lá atrás, algo como a sétima fila, 14ª colocação.

Definição do grid, hora da verdade

Aqui entra em cena outra realidade do automobilismo das últimas duas décadas, em especial: a dificuldade de ultrapassagem. Não é só na F1. Isso em função de boa parte da performance dos carros vir da eficiência aerodinâmica.
E voltando ao mencionado há pouco: um piloto sem estar no nível de preparação dos melhores adversários e for meio segundo mais lento na sessão de classificação terá também sua corrida comprometida. Largando lá atrás chega lá atrás também.
O que vai aparecer? “Ah, esse piloto não tem talento.” E não é, necessariamente, verdade. Pode até nem estar dentre os mais capazes, como pode ser que seus dotes não puderam aparecer pelos motivos expostos: não tinha o nível de desenvolvimento cobrado hoje pela competição. E não por sua culpa.
A seleção que escolhe os melhores pilotos mudou em relação ao que se fazia no passado. Todos os elementos discriminados aqui explicam a frase de Emerson: “Só o talento já não resolve hoje. Ficou bem mais complexo para um piloto fazer sucesso”.
Parece ser equivocado acreditar que o Brasil deixou de ter pilotos capazes e apenas isso explicaria a última vitória na F1 remontar ao GP da Itália de 2009, em Monza, com Rubens Barrichello, da Brawn GP. Muitos outros fatores passaram a cruzar essa estrada e com interferência direta no que eles poderiam conquistar.
Ah, adicione à balança a inoperância da Confederação Brasileira de Automobilismo (CBA) e a total indiferença do Ministério do Esporte para com esse esporte, bem ao contrário de seus correspondentes em países com pilotos de sucesso pelo mundo.

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